29/11/11

Desassossego, de novo...

"O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita
que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em
mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que [se]
destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero
sentir, não sei o que penso nem o que sou.
Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem sensação, o traje de alegria natural
de que usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes
contente, estou sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça
sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos
mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimento o ar pardo e
mau.
Abandonar todos os deveres, ainda os que nos não exigem, repudiar todos os lares, ainda os que não
foram nossos, viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de
majestades sonhadas... Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa da
vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamento, sensação sem si-mesma, por estrada contornando
montanhas, por vales sumidos entre encostas íngremes, longínquo, imerso e fatal...
Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...
Um sopro leve de vento, que por detrás da janela não sinto, rasga em desnivelamentos aéreos a queda  rectilíneada chuva. Clareia qualquer parte do céu que não vejo. Noto-o porque, por detrás dos vidros
meio-limpos da janela fronteira, já vejo vagamente o calendário na parede lá dentro, que até agora não
via.
Esqueço. Não vejo, sem pensar.
Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de diamantes mínimos, como se, no alto, qualquer
coisa como uma grande toalha se sacudisse azulmente dessas migalhinhas. Sente-se que parte do céu
está já aberta. Vê-se, através da janela fronteira, o calendário mais nitidamente. Tem uma cara de
mulher, e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta dentífrica é a mais conhecida de todas.
Mas em que pensava eu antes de me perder a ver? Não sei. Vontade? Esforço? Vida? Com um grande
avanço de luz sente-se que o céu é já quase todo azul. Mas não há sossego – ah, nem o haverá nunca! –
no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no
sótão da casa alheia. Não há sossego – e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter
..." 
F. Pessoa, Bernardo Soares

Ai, ai... Ondas

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