02/03/12

Reflexões

Breves apontamentos do "antes":

 
2009/11/21
Passam umas horas sobre uma data importante que eu não desejava ter passado por ela sem ter tido um contacto, mesmo que breve contigo, para te dar força, serenidade e proporcionado uma via de luz que te confortasse no longo caminho que ainda tens pela frente, nem que fosse com um simples parabéns e muitas felicidades pelo teu aniversário.



Porém os últimos acontecimentos têm absorvido demasiado a minha atenção forçando-me a desconsiderar o que me rodeia e a reflectir sobre a minha vida que, de interessante, em muitos momentos últimos têm sido passados a divagar e a rememorar cenas da vida que influenciaram profundamente as minhas decisões e optar por um caminho que sempre considerei certo e que, agora, se apresenta em brumas de dúvidas, espaços escuros em que apenas o instinto de sobrevivência prevaleceu e orientou as minhas decisões.



Vejo-me como o guerreiro que sempre enfrentou a selva cerrada de perigos, com medo, mas sempre enfrentando os perigos que súbita e imprevisivelmente surgiam. Não os procurava mas eles surgiam e eu enfrentava-os fossem quais fossem as consequências. Hoje, vejo-me mais como o albatroz desajeitado em terra mas que no ar vai planando no meio de tempestades, sobrevoando os perigos, contornando-os por instinto, e estou observando atentamente muito mais as próprias decisões, a  interioridade, e comparando-as com as do passado, perguntando-me a que deu lugar o guerreiro de antigamente.
Lembro-me de um lema que sempre respeitei (ou quase sempre para ser mais preciso): Tenta uma vez a segunda ainda poderá valer a pena…, mas cuidado com a terceira. Pode ser que alguém ou algo te esteja avisando que a escolha poderá não ser a melhor… que esse caminho está fechado .., que encerra perigos que desconheces e que te querem poupar a esses cardos. Algumas vezes, não poucas, tentei a terceira vez e sempre com maus resultados.



Teimosamente o antigo guerreiro desperta e aceita os desafios aceitando a familiaridade do perigo e desdenhando da perspicácia do albatroz. Sou eu de novo na luta sentindo-me irremediavelmente só face ao desconhecido cujos contornos adivinho na busca por informação credível que ora aparece, ora é posta em causa por outra informação. Então lembro-me do Cântico Negro de José Régio, trauteio-o e ecoam-me as vozes “Não vou por aí ... Não vou por aí …” a que associo outro: “Sabedoria”. E lá vou eu, pela terceira vez, aceitar ser preparado para o bloco operatório. Teimoso “dum caraças” …
Muitas vezes quis falar contigo sobre a filosofia que temos sempre presente nas nossas vidas ..  mas as oportunidades foram poucas mais pela presença de ouvidos estranhos que não permitiam a exploração da intimidade do nosso próprio eu. Muitas questões na vida ficam sem respostas ou com elas truncadas.
Não me despeço, não poderia despedir-me de ti como o fiz de outras(os), mas envolvo-te num abraço emocionado, grato pela tua amizade ao longo dos tempos
“Mas, com isto, que têm as estrelas? Continuam brilhando, altas e belas.”
Edgar

Reflexões                                                                                                                                        2009/11/21

Temendo por reacções emocionais negativas da minha amiga face ao que lhe disse na carta de hoje decidi ir vê-la para lhe mostrar que não me encontro deprimido mas sim disposto a ir à luta contra esta forma estranha de “vida/morta” que se afigura estar a desenvolver-se no meu “envelope”.
Com a ideia de a levar a almoçar fora mais a mulher que a criou e a estima como uma filha, tive a agradável surpresa de a encontrar a preparar um almoço de amigos e familiares em sua casa, comemorativo do seu aniversário. Recebeu-me de braços abertos e com um sorriso de contentamento acrescentou logo mais um prato na mesa não me dando qualquer chance de recusar participar no evento. Com apreensão vi-a a deslocar-se e a tratar dos preparativos sempre muito esticadinha com o cuidado de não se magoar e sofrer com as dores de coluna de que tanto a têm atormentado nestes anos últimos. Vi no seu olhar e semblante que a sombra da depressão se encontrava muito esbatida e um sorriso tranquilo teimava em permanecer nos seus lábios iluminando o semblante lembrando a jovem colega universitária cheia de vida e de esperanças dos tempos em que fomos colegas de ano na U. A. .



Ainda não tinha lido o correio electrónico e as minhas apreensões diluíram-se pois fiquei com a convicção de que, quando lesse, iria reagir de forma positiva. As minhas apreensões sobre a sua reacção não tinham razão de ser. Encontrei a amiga de espírito combativo e a apreciar os momentos da vida junto de familiares e amigos com o prazer que outrora emanava do seu espírito. Fiquei contente e foi um almoço descontraído e agradável numa cavaqueira alegre que se prolongou durante a tarde. A meio desta anunciei o meu regresso a casa pois durante a semana não tivera oportunidade de estar com minhas netas e na próxima semana iria acontecer a mesma situação. Senti o carinho destes amigos nos seus semblantes e olhares doces e sorridentes de quem está de bem consigo e com os outros.
Parti sob chuva intensa com a velocidade mais reduzida pese embora o bom estado da auto-estrada. Sem me dar conta do tempo estava em casa das netas que me receberam com o carinho e alegria de sempre, bem como o genro e minha filha.
Recolhi “a penates” para o conforto da minha casa sentindo o peso do silêncio pela ausência prolongada da minha companheira de há muitos anos. A lembrança desse sofrimento constrangeu-me a alma e recordei o seu espírito alegre, sempre interessado no bem-estar dos outros e nas soluções para os problemas deles, o carinho que sempre demonstrara e, agora, sempre voltada para a sua incapacidade de reagir às suas angústias, enrolada na sua concha como um caracol durante o Inverno. 



Sofro com o reconhecimento da minha incapacidade de a ajudar a voltar-se de novo para a vida pese embora todas as iniciativas, persistência e teimosia, quer minhas quer dos especialistas que se desdobram à sua volta. “Raio de vida” que nos pregou esta partida pela quinta vez. A recuperação nas outras não foi fácil mas conseguiu-se sempre em menos de dois anos. Agora o horizonte está pesado, escuro, não se vislumbrando a mais pequena réstia de luz que proporcione uma esperança. O ponto fraco do guerreiro, o meu “calcanhar de Aquiles”. Procuro afastar os pensamentos negativos, recorro a um soporífero em SOS e vou-me deitar.
Daqui a dois dias vou ser de novo internado no IPO para uma biopsia. Tenho consciência da gravidade do problema, da existência de sarcomas no pescoço e que os especialistas necessitam de identificar a origem e o estádio de desenvolvimento para poderem decidir as técnicas de intervenção mais adequadas. Sei que vai ser penoso, prolongado e que, eventualmente, poderá não haver erradicação completa. Não me sinto assustado. Depois do “voo do albatroz” que ultimamente venho fazendo para distanciar-me e analisar todos os dados e possibilidades, o guerreiro está de regresso, pronto para mais uma nova batalha quando outras ainda estão em curso.


                                                                                                                                             2009-11-22
Acabo de receber um e-mail de um amigo e antigo colega de internato. Manda-me um poema de Fernando Pessoa:
“Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um ‘não’.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...

(Fernando Pessoa)”
Lindo…  vou parar e reflectir…

                                                                                                                                                             2009-11-29
Faz algum tempo que nada escrevo. Na semana passada passei quatro dias internado no I.P.O. e tecnicamente preparado por duas vezes para entrar no bloco operatório a fim ser sujeito a uma biopsia. Da segunda vez uma enfermeira ao fim do dia veio-me dizer que não iria ser operado naquele dia nem no seguinte. Estranhando a ausência de informação por parte dos médicos responsáveis e com a expectativa desagradável de ficar internado durante o fim-de-semana, protestei e exigi à médica de serviço que promovesse a minha alta hospitalar   marcando nova entrada. Colaborante, a médica contactou telefonicamente o clínico responsável pelo bloco e lá saí com a indicação de internamento na Segunda seguinte para ser operado na Terça. Agradeci mas não evitei a expressão “vamos a ver se desta vez cumprem a vossa parte”. Limitou-se a sorrir, condescendente, pois estava informada da minha revolta e dos protestos veementemente manifestados.
Tive a preciosa ajuda da minha filha Sami e de meu genro Gabriel que entretanto haviam ido visitar-me. São demasiado diplomatas e optam sempre pela atitude politicamente correcta nas intervenções que fazem. Uma doçura de contactos que contrasta com a minha rebeldia e exigência do cumprimento de compromissos assumidos por outros da mesma forma que exijo de mim.
Meus companheiros de enfermaria eram dois homens de idade avançada que haviam sido submetidos a traqueotomia e um jovem que apresentava nódulos grandes e túrgidos no pescoço e que entrou no mesmo dia que eu. Era impressionante a vicissitude e dificuldades dos dois velhotes e um deles recusava sempre qualquer ajuda, levantando-se e indo fazer a sua higiene pessoal à revelia da enfermagem que, no entanto, o acompanhava de perto. Eis aqui um guerreiro… Mergulho no voo do albatroz visionando lá do alto os perigos e ameaças que pendem sobre mim. Não sinto medo nem pena, mas a apreensão aviva mais uma nuvem sombria no horizonte da vida. Concentro-me e penso “é só mais uma batalha que acresce às outras que ainda estão em curso”.
Fui ver o correio electrónico e vi a carta da amiga:
 “Olá Amigo,
Vai correr tudo bem em relação à biopsia e graças a Deus não há-de ser grave.
Em relação à tua companheira de Anos convence-te que a perdeste e que agora é só a tua Amiga que está doente. Talvez, assim o "calcanhar de Aquiles" se torne menos doloroso e mais fácil de encarar.
Tens o resto da tua família e apoia-te neles sem te centrares muito na tua ex-companheira. Pode ser que resulte. Principalmente agora que precisas de todas as tuas forças para enfrentares esta tua batalha, pensa assim. Às vezes temos que ser egoístas para conseguirmos ultrapassar os obstáculos que a vida nos apresenta. Agora é uma altura dessas.
Um Beijo”
Reflecti… Por mais que uma vez as minhas filhas me haviam dito isso e sempre respondi como agora o faço: “Se adoptar esse procedimento significará que desisti de lutar por ela”. Mas em boa verdade não vejo como e nem os especialistas vêem se bem que digam sempre “vamos esperar e continuar o tratamento”.



Fim-de-semana tranquilo, pleno de contactos de familiares e amigos a manifestarem a sua solidariedade e apoio e, de novo, o internamento com novos exames desta vez efectuados pelas médicas anestesista e cirurgiã. Tive a certeza que iria ser operado no dia seguinte. No bloco operatório ainda vi os olhos da anestesista e saí do bloco já acordado. Informaram-me que entre três a quatro dias teria alta e seria marcado o dia em que teria conhecimento do resultado das análises anátomo-patológicas e posteriores acções interventivas. Para surpresa minha, logo no dia seguinte e após observação clínica foi-me dada a alta hospitalar e marcado o dia do diagnóstico técnico.
Fiquei contente e na volta para casa fui ver minha companheira internada numa Instituição de tratamento psiquiátrico. Ainda não tinha saído da sua “concha” e durante a manhã tinha estado a gritar que se ia matar.
Lembrei-me que no segundo internamento um visitante de outra enfermaria que ia ser intervencionado no dia seguinte a um cancro na base da língua, expressou a sua inquietude e profunda preocupação. Perguntei se não se tratava de uma biopsia para avaliar da gravidade do seu problema. Disse-me que isso já havia sido feito. Falei-lhe do voo do albatroz. Curioso e interessado provocou o desenvolvimento do tema e já passava da meia-noite quando se foi deitar aparentemente mais tranquilo. Não cheguei a vê-lo no dia seguinte pois estava na Unidade de Cuidados Intermédios, de acesso reservado, quando saí do hospital a caminho do meu “ninho”. Talvez possa vê-lo quando for tirar os pontos da intervenção cirúrgica.
“Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.”

Grande Fernando Pessoa!
                                                                                                                                                             2009-12-03

No passado feriado tive a grata surpresa da visita de minha irmã, meu irmão e respectivos consortes. Tal como costumo fazer quando os visito também eles não avisaram da visita, o que reflecte a filosofia de “amor com amor se paga” sempre presente nas nossas relações. A meu irmão, e só a ele, grande pensador e poeta, dei-lhe o conhecimento integral das minhas reflexões. Não tivemos a oportunidade de conversar em particular sobre o tema e, prevendo isso, deixou-me uma mensagem: (A sabedoria tomou o lugar da guerra e da luta. Ser o “sábio” em que te tornaste é a nova forma de vencer qualquer batalha. Admiro-te. Abraço). Li e reli o texto e reflectindo sobre a expressão “sábio”. Penso que os verdadeiros sábios sentir-se-ão melindrados por alguém se atrever a colocar-me entre os seus pares. Na verdade não passo de um amador que ao longo da vida tem tentado encontrar o seu caminho e que a busca não cessa.

 
No decorrer da conversa durante a tarde, a determinado momento disse: há dois sentimentos que são difíceis de suportar, o da impotência para ajudarmos quem nos é querido e a solidão. Fez-se silêncio por momentos que pareceram uma eternidade e logo minha irmã, muito religiosa, expressou a sua fé que a defendia nesses momentos. Logo mergulhei no voo do albatroz situando-me na questão da fé que ao longo da vida tem passado tão distante dos meus sentimentos e pensamentos. Confio muito mais nos valores que me foram transmitidos e que de tão testados se tornaram nos guias da minha consciência.
Ocorre-me então um texto de alguém (não estava identificado) que comparava a vida a uma viajem de comboio: “Em determinado momento entramos numa carruagem e nela permanecemos algum tempo. Noutro momento da vida andamos de carruagem em carruagem à procura de algo ou alguém que nos faça ocupar um lugar sem, com isso, rompermos o contacto com as pessoas e acontecimentos que nos marcaram. Em cada estação saem e entram novas pessoas e ao longo do percurso outras percorrem a nossa carruagem, ficam ou continuam a busca do seu lugar.”
Ontem fui tirar os pontos da biopsia ao IPO da Coimbra. Levei o cacto que havia prometido a uma jovem que tinha herpes na cara. Só entrava de serviço à tarde e fiquei a saber que se chama Rita, e logo outras auxiliares que ali trabalham me garantiram que fariam a entrega. Após o tratamento procurei o Nelson, aquele a quem havia falado do voo do albatroz que, quando me viu, logo a sua expressão se iluminou, abraçou-me dizendo-me por gestos que estava bem e que me guardava no coração. Tinha sido operado ao cancro na base da língua e sabe que ainda tem muito caminho difícil a percorrer.
Na volta e por imperativo da minha consciência fui visitar a minha companheira. Estava deitada num sofá, como de costume e como tem sido há uma eternidade de dois anos e meio, veio a choramingar, sem lágrimas, dizendo-me repetidamente “eu vou morrer… eu vou morrer…”. Foi difícil travar essa verborreia e tentei, mais uma e outra vez, fazê-la encarar a vida falando-lhe de esperanças, de sonhos, das filhas, genros, neto e netas, dos amigos, da mãe que enfrenta com coragem as dificuldades de saúde, … inútil. É desesperante! A cada tema, a cada momento, volta sempre à sua queixa não se interessando por nada do que a rodeia. Apenas ela e seus lamentos existem. Sinto-me cada vez mais impotente para a ajudar a encontrar uma saída, uma razão ou argumento que a conduza a pensamentos positivos de forma a que possa voltar-se para a vida. Parti triste e constrangido refugiando-me em casa e deixando os sentimentos fluírem enquanto as lágrimas da minha inutilidade corriam pela face.
«Beijo as tuas lágrimas meu Pai, temos Amor que chegue no coração para vos amar eternamente». Escreve-me a minha filha Sandra e falando em nome de todas eu sei que é a pura verdade. Sempre tive uma excelente relação afectiva com elas não deixando de lhes proporcionar os “raspanetes” sempre que beliscavam os códigos de conduta individuais e de relacionamento colectivo.

                                                                                                                                                             2009-12-09
Ao longo dos dias que entretanto decorreram fui tomando uma rápida nota de uma ou outra situação ou acontecimento que me fizeram mergulhar em reflexões.
Uma delas tem a ver com sensações que qualquer um em algum momento passa na sua vida: a da impotência para ajudar quem nos é querido e a da solidão. São as que considero mais difíceis de superar e só mesmo o escape do meu voo de albatroz vem em meu auxílio. Poderoso voo que nos torna insignificantes face ao mundo e ao universo. Quem pode sentir-se só quando nos consideramos como um ponto de energia pura em evolução no Universo? E que a morte é parte integrante do desenvolvimento da energia, essência cósmica da evolução?
O que para mim se afigura como verdade para outros será pura utopia …
                                                                                                                                                             2009/12/14
Já passaram uns dias desde a minha presença na consulta de diagnóstico técnico no I.P.O.. Estavam presentes o médico da primeira consulta Dr. Arnaldo e mais três. Percebi um certo embaraço do médico a tentar “adoçar a pílula” ao dar-me a notícia de que se confirmava a presença de carcinoma descrevendo as medidas de tratamento que se traduziam como sendo a quimioterapia, duas a três sessões em avaliação contínua, seguida de radioterapia, esta com internamento.
Não expressei surpresa ou emoção uma vez que conscientemente não tinha dúvidas da natureza dos nódulos que ainda se estavam a desenvolver o pescoço (e estão) em três dimensões: extensão, volume e incómodo. Ao referir-me a estas dimensões uma das médicas levantou-se foi observar-me por palpação a que se seguiu o médico.
Confirmada a situação passou-se ao planeamento encarando-se o internamento nas duas fases do tratamento ou fazer a quimioterapia em ambulatório, situação que eu preferia tanto mais que estando na quadra natalícia seria mais agradável estar com a família. Ligaram ao sector da cirurgia para marcar do dia da implantação do cateter necessário mas tal não foi possível de imediato pelo que ficaram de me comunicar em momento oportuno. Entretanto iria ser observado em estomatologia, consulta que ficou marcada para o dia 15.
Despedi-me com um aperto de mão ao Dr. Arnaldo e um aceno de cabeça ao restante corpo clínico, que retribuíram com um sorriso de simpatia. Gosto do sorriso. É maravilhoso o despertar de sensações de positividade, empatia e bem estar que proporciona a quem o recebe. Ao longo da vida já me havia apercebido disso mas apenas agora senti a sua enorme importância.
Reflectindo sobre a mensagem que iria enviar à família, decidi não estar com rodeios ou tentar ser diplomata, interessava transmitir verdade e assim o fiz. Encetei o caminho e, inevitavelmente passei por Condeixa para visitar a minha companheira. Apenas manifestou a sua vontade de se deitar e nem dois minutos esteve comigo, a sua única preocupação (se assim lhe posso chamar) era aproveitar o quarto aberto. Olhei para a figura a arrastar os pés a caminho do quarto enquanto uma avalanche de recordações de uma vida conjunta perturbou minha visão ensombrando ainda mais o meu horizonte vindouro. Olhei para o céu límpido e de um azul cristalino, agarrei o voo do albatroz e parti.
18:50 - Acabei de receber um e-mail de minha filha Mafalda:
“Tu és o meu
Hoje, ontem, amanhã…
Esta luta…
Rei dos guerreiros!
Ouvimos, apoiamos e admiramos
Impreterivelmente o nosso albatroz!
Da tua filha Mafalda”
Sem sequer esperar um pouco e reflectir, respondi:
 Não faças de mim o HEROI que não sou. Sou apenas o soldado que não desiste de lutar: o guerreiro, que tem medo e o enfrenta, que tem as suas fraquezas e que busca no albatroz as energias vitais para não desistir. Poderoso voo que nos traz a tranquilidade e o bom senso. Beijinhos.
Antes, há cerca de duas horas, a minha filha Sandra havia enviado mensagens que não compreendi a razão de ser. Parecia nunca ter ouvido falar de sarcomas da cabeça e pescoço quando, muito antes do diagnóstico clínico da D.T. lhe havia dito o que tinha e mostrado o resultado da pesquisa que fiz sobre o assunto. Esclarecedor mas que necessitava institucionalmente de uma confirmação técnica e científica por parte das entidades oficiais objectivando os procedimentos de tratamento. Não entendeu, ou melhor, não quis entender a mensagem provavelmente na esperança de que fosse outra coisa sem importância.
Fui interrompido por um telefonema de minha irmã Toneta. Como sempre, desde tenra idade, a cuidar dos irmãos mais novos. Extraordinária criatura com muita fé na religião católica e dotada de um bem-fazer e bem-dizer excepcional, preocupa-se muito mais com os outros do que com ela própria. Na conversa disse-lhe que não precisava que outros sofressem por mim, mas sim de sorrisos pois estes são o alento da vida “dispenso choramingas pé-de-salsa pois posso contratar carpideiras e divertir-me a vê-las a chorar, e dispenso beatas pois essas guardo a dos cigarros que fumo”. Um pouco ou muito duro dado o contexto da religiosidade em que ela está profundamente envolvida. Expliquei-lhe o “ponto de vista do albatroz” no contexto do Universo e ela expressou a sua alegria por ver que não estou desanimado nem triste.

                                                                                                                                                             2009/12/17
Acordei inquieto, pouco passava da meia-noite, Tentei lembrar sem sucesso dos sonhos inquietantes que me perturbaram o sono sem o conseguir. Tomei leite com chocolate, fumei  um cigarro e fechei os olhos tentando aliviar as dores nas costas resultantes da fractura da sétima dorsal há cerca de cinco anos. Então surgiu a pergunta inquietante do sonho “Como se sente?” E a resposta imediata surgiu-me de rompante “Como o Albatroz observando o sofrimento da Fénix, sabendo que do renascimento dela depende o seu próprio futuro”. O mundo vai desabando à minha volta à medida que vou sentindo a praga a crescer num fluxo de palpitações reflexas que se contraem e se estendem no pescoço aquecendo a massa de tecidos moles crescendo e tomando conta do meu envelope. Inexoravelmente vai ganhando terreno enquanto aguardo pela intervenção dos especialistas e da sua tecnologia científica. Será que chegarão a tempo de neutralizar o monstro? Olho para o pequeno objecto de comunicação e questiono: Quando tocarás ouvindo do outro lado um dos interlocutores do IPO a dizer-me venha em tal dia às tantas horas, em jejum (ou não) para a primeira intervenção de quimioterapia. Mudo, quieto, o objecto permanece indiferente às minhas apreensões e angústias.


Relembro os contactos e o planeamento dos procedimentos prévios às intervenções e volto a situar-me. O arranque dos poucos dentes originais está marcado para 2010/01/05 sendo necessária pelo menos uma semana de intervalo para o início da quimioterapia. “Sossega o facho rapaz! Aproveita a quadra natalícia e a folga porque depois começa a batalha.” (Está lá!! É do inimigo?? Olha, vocês podiam parar um pouco com os tiros  …) Grande Raul Solnado. Bem hajas!!
Fui entretanto dormir e às oito horas pelo noticiário soube que pelas horas das minhas inquietações o País havia sido abalado por um sismo de magnitude 6.1 na escala de Richter. Curioso… Não???
O dia passou lento, com a prova da prótese dentária que havia mandado fazer uma vez que teria de sujeitar-me à extracção dos cinco dentes que me restam face aos tratamentos programados de quimioterapia e radioterapia. Fui entretanto visitar minha companheira e, antes disso, falar com o médico psiquiatra que a trata, uma vez que na quadra natalícia que vivemos há intenções de a trazer ao lar. Deixou a autorização de saída e alertou para o seu regresso imediato logo que iniciasse qualquer processo de desestabilização. Encontrei-a mais calma, ainda muito fechada na sua “concha”. O seu horizonte continua muito ensombrado por nuvens de tempestades psicológicas, o que me deixa apreensivo nas influências negativas sobre o desenvolvimento do neto que estará presente nesta quadra.
                                                                                                                                             2010-01-09
Passou a quadra natalícia e com ela uma série de viagem e contactos directos com a família e amigos. Foi algo com um sabor agridoce pois todos manifestaram a sua grande preocupação pelo cancro que se está a desenvolver e a sua influência no meu estado de espírito. Inúmeras vezes vi-me a necessidade de explicar a minha filosofia de vida para que compreendessem que as suas preocupações eram bem maiores que a minha apreensão. Sim, apreensão, pois esta traz uma “carga” positiva na medida em que nos impulsiona para a luta, a criatividade e a resistência, por outro lado a preocupação transporta a “carga” negativa, contrária aos vectores da outra.
Antes das viagens recebi um e-mail de meu irmão:
 “Edgar, a vida acontece sempre que elaboramos planos para que ela seja vivida de acordo com eles, mas por vezes esses planos são-nos alterados sem que o queiramos e por forças ou circunstâncias alheias ao nosso planeamento. Somos porém capazes de melhorar o que nos aparece, somos determinantes e factor decisivo em tudo o que nos surge, o teu voo do “albatroz” mostrar-te-á como. Saberás analisar que todas as transformações têm fundamento. Voa alto meu irmão, tudo isto que disse já o sabes.”
Fiquei ciente de que ele compreendera perfeitamente a conversa que tivemos uns dias antes numa visita surpresa que me fez.
A todos os amigos e familiares enviei o e-mail de Natal que recebi de um amigo e colega de escola que vive actualmente no Brasil:
“Quero neste Natal enfeitar um pinheiro natalício dentro do meu coração e nele pendurar, em vez de presentes, bolas e luzinhas... Os nomes de todos os amigos, os antigos e os mais recentes, os de longe e de perto, os que vejo a cada dia e os que raramente encontro... Os sempre lembrados e os que às vezes ficam esquecidos no pensamento mas não no coração, os das horas difíceis e os das horas alegres... Os que sem querer magoei ou sem querer me magoaram. Aqueles que pouco me devem e aqueles a quem muito devo! Os nomes de todos os que já passaram pela minha vida, especialmente aqueles que já partiram e que lembro com tanta saudade... Que o espírito do Natal esteja vivo em cada dia do novo ano e que a nossa Amizade pendure no tempo... Feliz natal”
Lindo texto e, conhecendo-o, acredito que tenha sido o autor do mesmo. Meu irmão uma vez mais expressou o seu pensamento e filosofia de vida com a resposta:
«Nesse "pinheiro", havia em lugar de luzes uma fogueira sempre acesa, e à volta desse "pinheiro" juntamos os braços e não conseguimos abraçá-lo, e se juntássemos todos os amigos, os de ontem e os mais recentes teríamos o mesmo problema o "pinheiro" seria proporcionalmente maior. Julgamos que levamos muito tempo para plantar o "pinheiro de Natal", mas ele cresce connosco e com ele os Amigos seguem-nos. Feliz Natal.»
Para a festa natalícia filha e genro foram buscar minha companheira com a perspectiva de ficar em casa durante uns dias. Passou dia e noite véspera de Natal sempre com muita inquietação traduzida num comportamento deprimente, choroso e raramente interessada no que passava em seu redor. Voltada para si mesmo nas suas lamúrias e paranóias, obrigou-me a uma noite de vigília aproveitada para repensar alternativas que há uns meses procuro sem sucesso. Revi todas as diligências, consultas de especialistas, exames complementares, tratamentos efectuados e o que me foi dito pelo seu médico assistente, voltando a sentir em profundidade a minha impotência para ajudar a companheira de uma vida plena de coisas boas e más que sempre vivemos juntos. No próprio dia de Natal regressou ao internamento na Casa de Saúde.
Pese embora o cansaço e as permanentes dores resultantes de qualquer esforço que me obrigam a respirar fundo voando para horizontes mais vastos, a viagem no fim do ano foi para mim não só grata nos contactos, conversas e prospecção da minha própria interioridade, como clarificadora nas orientações que, no fundo, sempre regeram a minha vida sem que de tal tivesse consciência. Isto porque agia por instinto sem me preocupar com o conhecimento das razões. Apenas a figura do espelho de todos os dias me importunava questionando a validade das minhas acções de véspera, do dia e do futuro. E eu respondia: O futuro é o presente e o presente já é passado, vive em paz contigo e com os outros.


Em casa de minha irmã, de manhã cedo, ela dizia-me “Vou rezar ao meu Senhor”, invariavelmente eu respondia “Dá-Lhe cumprimentos meus”. No regresso dizia-me “Olha… Ele retribui os cumprimentos”, Da primeira vez perguntei “Ele lembra-se de mim?” e a resposta pronta de quem tem fé “Está sempre tomar conta de ti”. É maravilhosa a sintonia que as pessoas com fé têm na religião que professam.
Desde a pré-puberdade que me desencantei com o comportamento dos chamados representantes de Deus na Terra tendo, por isso, desligado das práticas religiosas regulares obrigando-me a escrutinar criteriosamente cada “representante” partindo sempre da premissa contrária à da justiça “É culpado até me provar a sua inocência”. Aberrações de critério, reconheço, mas de que não abdico em duas matérias fundamentais: Religião e Política. As duas categorias mais perigosas e perniciosas na vida de qualquer ser vivo, animal ou vegetal, e a que nem os inertes estão a salvo.
Aquando da despedida vi na expressão e comportamento de minha irmã a sua grande preocupação relativa às minhas reacções face à doença que me ataca. Logo disse-lhe “Quando olho para o meu vizinho neste País e para o nosso mundo, vejo biliões de pessoas a viverem miseravelmente, sofrendo atrocidades; não posso deixar de me sentir reconhecido e grato pela vida que tenho tido até ao presente”. Olhou-me surpreendida e reconheceu a validade da afirmação de tal forma de encarar a vida abraçando-me com o carinho que lhe é inerente.
A meu irmão, quase sempre revoltado com a vida mas sempre disposto a enfrentar as adversidades, numa conversa que tivemos ao tomar um café contei-lhe que antes de me casar a minha noiva foi visitar, conhecer e apresentar-se à nossa família e que na volta disse-me: “A tua mãe, tua avó e tua tia disseram-me que gostaram muito de mim e que eu era mal empregue se casasse contigo. Que tu não prestavas, que ia ser infeliz” e eu respondi-lhe “Não temos nenhum contacto íntimo mas apenas um compromisso verbal. Em qualquer altura podes escolher, casar comigo ou não. Qualquer que seja a escolha que faças … eu aceito”. E casamos dois anos depois. Meu irmão envolveu a sua cabeça com a mãos e apenas disse “Não podemos escolher a família”, respondi-lhe “Mas podemos ser nós, rejeitando ou aceitando a opinião dos outros”.
A três dias do início do tratamento de quimioterapia e ainda a recuperar da extracção dos dentes, sentindo o monstro a crescer em três dimensões (volume, extensão e incómodo) vou voar e observar os horizontes que se me apresentam.

2012-03-03




Hoje a luta não é diferente. Simplesmente existe mais confiança e esperança, não a esperança de vida mas a do crédito na humanidade, nas pessoas, na sua entrega à causas em que acreditam, na juventude que com cada vez mais empenho e criatividade reestabelece condições de vida para os que os rodeiam, conhecendo-os ou não! Estou orgulhoso dessa geração a que uns desbocados chamaram de "à rasca" sem terem em conta o seu verdadeiro valor! Obrigado juventude do meu PAÍS!

1 comentário:

Respirem fundo e desabafem,:)