Tens de saber que às vezes é difícil
Matar o que nos mata,
Ir aguçando o
gume do cutelo
E movê-lo
depois, logo em relâmpago,
Até que o
monstro seja degolado
E não fique
sequer uma gota de sangue,
Da cicuta voraz
que lhe corria
Pelas veias tão
geladas, sob a pele
Que terias
beijado quase a medo
Em busca de um
sabor que fosse o fogo
E o ar e a água,
Mas era só
veneno adocicado,
Daquele que
vicia sem parecer viciar
E nos deixa sem
cura a vida inteira.
Levanta-te, bem sabes,
Desde o tempo
dos contos infantis,
Que todo o mal
procura disfarçar-se
Em rostos como
aquele,
Na perfeição
volátil desse abismo
A que chamam
beleza e vai ardendo
Em lânguidos
sorrisos e olhares
Espíritos como o
teu,
Demasiado
inocentes ou perversos
Para desconfiar
da eternidade
Ou para resistir
à luz fosforescente
Que, obedecendo
às leis da natureza,
Sempre soube
atrair até à morte
O alucinado voo
das borboletas.
Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
De apertar o
gatilho as vezes necessárias
Para que tudo
morra - os estertores
Da tua alma ou
do teu corpo
Mesmo assim doem
menos, acredita,
Que o travo turvo
dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
Rasgar dentro de
ti, antes de serem escritos,
Os mil e um
poemas
Que haverias de ler,
talvez sem esforço,
À flor daquela
face, não hesites,
Porque a
felicidade tem um preço
E os versos,
quaisquer versos, são apenas
A memória infiel
deste vento que move
As árvores lá
fora enquanto é noite,
Mas que às
primeiras horas da manhã
Deixará
elevar-se um nevoeiro
Tão espesso e
esbranquiçado, que o amor
Será nesse
momento uma palavra baça
Que nada te
dirá, a ti ou a ninguém.
Fernando Pinto
do Amaral, "Exorcismo"
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