03/12/11

Levanta-te, não chores.



Tens de saber que às vezes é difícil
Matar o que nos mata,
Ir aguçando o gume do cutelo
E movê-lo depois, logo em relâmpago,
Até que o monstro seja degolado
E não fique sequer uma gota de sangue,
Da cicuta voraz que lhe corria
Pelas veias tão geladas, sob a pele
Que terias beijado quase a medo
Em busca de um sabor que fosse o fogo
E o ar e a água,
Mas era só veneno adocicado,
Daquele que vicia sem parecer viciar
E nos deixa sem cura a vida inteira.
Levanta-te, bem sabes,
Desde o tempo dos contos infantis,
Que todo o mal procura disfarçar-se
Em rostos como aquele,
Na perfeição volátil desse abismo
A que chamam beleza e vai ardendo
Em lânguidos sorrisos e olhares
Feitos de pura seda, seduzindo
Espíritos como o teu,
Demasiado inocentes ou perversos
Para desconfiar da eternidade
Ou para resistir à luz fosforescente
Que, obedecendo às leis da natureza,
Sempre soube atrair até à morte
O alucinado voo das borboletas.
Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
De apertar o gatilho as vezes necessárias
Para que tudo morra - os estertores
Da tua alma ou do teu corpo
Mesmo assim doem menos, acredita,
Que o travo turvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
Rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
Os mil e um poemas
Que haverias de ler, talvez sem esforço,
À flor daquela face, não hesites,
Porque a felicidade tem um preço
E os versos, quaisquer versos, são apenas
A memória infiel deste vento que move
As árvores lá fora enquanto é noite,
Mas que às primeiras horas da manhã
Deixará elevar-se um nevoeiro
Tão espesso e esbranquiçado, que o amor
Será nesse momento uma palavra baça
Que nada te dirá, a ti ou a ninguém.

Fernando Pinto do Amaral, "Exorcismo"

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