Sou a tua casa, a
tua rua, a tua segurança, o teu destino. Sou a maçã que comes e a roupa
que vestes. Sou o degrau por onde sobes, o copo por onde bebes, o teu
riso e o teu choro, o teu frio e a tua lareira. O pedinte que ajudas, o
asilo que te quer acolher. Sou o teu pensamento, a tua recordação, a tua
vontade. E também o artesão que para ti trabalha, o medo que te
perturba e o cão que te guia quando entras pela noite. Sou o sítio onde
descansas, a árvore que te dá sombra, o vento que contigo se comove. Sou
o teu corpo, o teu espírito, o teu brilho, a tua dúvida.
Sou a tua mãe,
o teu amante, o marfim dos teus dentes. E sou, na luz do outono, o teu
olhar. Sou a tua parteira e a tua lápide. Os teus vinte anos. O coração
sepultado em ti. Sou as tuas asas, a tua liberdade, e tudo o que se move
no teu interior. Sou a tua ressaca, o teu transtorno, o relógio que
mede o tempo que te resta. Sou a tua memória, a memória da tua memória, o
teu orgulho, a fecundação das tuas entranhas, a absolvição dos teus
pecados. O teu amuleto e a tua humildade. Sou a tua cobardia, a tua
coragem, a força com que amas. Sou os teus óculos e a tua leitura. A tua
música preferida, a tua cor preferida, o teu poema preferido. Sou o que
significas para mim, a ternura que desagua nos teus dedos, o tamanho
das tuas pupilas antes e depois de fazer amor. Sou o que sou em ti e o
que não podes ser em mim. Sou uma só coisa. E duas coisas diferentes.
Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'
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