2009/11/21
Passam
umas horas sobre uma data importante que eu não desejava ter passado por ela
sem ter tido um contacto, mesmo que breve contigo, para te dar força,
serenidade e proporcionado uma via de luz que te confortasse no longo caminho
que ainda tens pela frente, nem que fosse com um simples parabéns e muitas
felicidades pelo teu aniversário.
Porém
os últimos acontecimentos têm absorvido demasiado a minha atenção forçando-me a
desconsiderar o que me rodeia e a reflectir sobre a minha vida que, de
interessante, em muitos momentos últimos têm sido passados a divagar e a
rememorar cenas da vida que influenciaram profundamente as minhas decisões e
optar por um caminho que sempre considerei certo e que, agora, se apresenta em
brumas de dúvidas, espaços escuros em que apenas o instinto de sobrevivência
prevaleceu e orientou as minhas decisões.
Vejo-me
como o guerreiro que sempre enfrentou a selva cerrada de perigos, com medo, mas
sempre enfrentando os perigos que súbita e imprevisivelmente surgiam. Não os
procurava mas eles surgiam e eu enfrentava-os fossem quais fossem as
consequências. Hoje, vejo-me mais como o albatroz desajeitado em terra mas que
no ar vai planando no meio de tempestades, sobrevoando os perigos,
contornando-os por instinto, e estou observando atentamente muito mais as
próprias decisões, a interioridade, e
comparando-as com as do passado, perguntando-me a que deu lugar o guerreiro de
antigamente.
Lembro-me
de um lema que sempre respeitei (ou quase sempre para ser mais preciso): Tenta
uma vez a segunda ainda poderá valer a pena…, mas cuidado com a terceira. Pode
ser que alguém ou algo te esteja avisando que a escolha poderá não ser a
melhor… que esse caminho está fechado .., que encerra perigos que desconheces e
que te querem poupar a esses cardos. Algumas vezes, não poucas, tentei a
terceira vez e sempre com maus resultados.
Teimosamente
o antigo guerreiro desperta e aceita os desafios aceitando a familiaridade do
perigo e desdenhando da perspicácia do albatroz. Sou eu de novo na luta
sentindo-me irremediavelmente só face ao desconhecido cujos contornos adivinho
na busca por informação credível que ora aparece, ora é posta em causa por
outra informação. Então lembro-me do Cântico Negro de José Régio, trauteio-o e
ecoam-me as vozes “Não vou por aí ... Não vou por aí …” a que associo outro:
“Sabedoria”. E lá vou eu, pela terceira vez, aceitar ser preparado para o bloco
operatório. Teimoso “dum caraças” …
Muitas
vezes quis falar contigo sobre a filosofia que temos sempre presente nas nossas
vidas .. mas as oportunidades foram
poucas mais pela presença de ouvidos estranhos que não permitiam a exploração
da intimidade do nosso próprio eu. Muitas questões na vida ficam sem respostas
ou com elas truncadas.
Não
me despeço, não poderia despedir-me de ti como o fiz de outras(os), mas
envolvo-te num abraço emocionado, grato pela tua amizade ao longo dos tempos
“Mas, com isto, que
têm as estrelas? Continuam brilhando, altas e belas.”
Reflexões 2009/11/21
Temendo por reacções emocionais
negativas da minha amiga face ao que lhe disse na carta de hoje decidi ir vê-la
para lhe mostrar que não me encontro deprimido mas sim disposto a ir à luta
contra esta forma estranha de “vida/morta” que se afigura estar a desenvolver-se
no meu “envelope”.
Com a ideia de a levar a almoçar
fora mais a mulher que a criou e a estima como uma filha, tive a agradável
surpresa de a encontrar a preparar um almoço de amigos e familiares em sua casa,
comemorativo do seu aniversário. Recebeu-me de braços abertos e com um sorriso
de contentamento acrescentou logo mais um prato na mesa não me dando qualquer
chance de recusar participar no evento. Com apreensão vi-a a deslocar-se e a
tratar dos preparativos sempre muito esticadinha com o cuidado de não se magoar
e sofrer com as dores de coluna de que tanto a têm atormentado nestes anos últimos.
Vi no seu olhar e semblante que a sombra da depressão se encontrava muito
esbatida e um sorriso tranquilo teimava em permanecer nos seus lábios
iluminando o semblante lembrando a jovem colega universitária cheia de vida e
de esperanças dos tempos em que fomos colegas de ano na U. A. .
Ainda não tinha lido o correio
electrónico e as minhas apreensões diluíram-se pois fiquei com a convicção de que,
quando lesse, iria reagir de forma positiva. As minhas apreensões sobre a sua
reacção não tinham razão de ser. Encontrei a amiga de espírito combativo e a
apreciar os momentos da vida junto de familiares e amigos com o prazer que
outrora emanava do seu espírito. Fiquei contente e foi um almoço descontraído e
agradável numa cavaqueira alegre que se prolongou durante a tarde. A meio desta
anunciei o meu regresso a casa pois durante a semana não tivera oportunidade de
estar com minhas netas e na próxima semana iria acontecer a mesma situação.
Senti o carinho destes amigos nos seus semblantes e olhares doces e sorridentes
de quem está de bem consigo e com os outros.
Parti sob chuva intensa com a
velocidade mais reduzida pese embora o bom estado da auto-estrada. Sem me dar conta
do tempo estava em casa das netas que me receberam com o carinho e alegria de
sempre, bem como o genro e minha filha.
Recolhi “a penates” para o
conforto da minha casa sentindo o peso do silêncio pela ausência prolongada da
minha companheira de há muitos anos. A lembrança desse sofrimento
constrangeu-me a alma e recordei o seu espírito alegre, sempre interessado no
bem-estar dos outros e nas soluções para os problemas deles, o carinho que
sempre demonstrara e, agora, sempre voltada para a sua incapacidade de reagir
às suas angústias, enrolada na sua concha como um caracol durante o Inverno.
Sofro com o reconhecimento da
minha incapacidade de a ajudar a voltar-se de novo para a vida pese embora
todas as iniciativas, persistência e teimosia, quer minhas quer dos
especialistas que se desdobram à sua volta. “Raio de vida” que nos pregou esta
partida pela quinta vez. A recuperação nas outras não foi fácil mas
conseguiu-se sempre em menos de dois anos. Agora o horizonte está pesado,
escuro, não se vislumbrando a mais pequena réstia de luz que proporcione uma
esperança. O ponto fraco do guerreiro, o meu “calcanhar de Aquiles”. Procuro
afastar os pensamentos negativos, recorro a um soporífero em SOS e vou-me
deitar.
Daqui a dois dias vou ser de novo
internado no IPO para uma biopsia. Tenho consciência da gravidade do problema,
da existência de sarcomas no pescoço e que os especialistas necessitam de
identificar a origem e o estádio de desenvolvimento para poderem decidir as
técnicas de intervenção mais adequadas. Sei que vai ser penoso, prolongado e
que, eventualmente, poderá não haver erradicação completa. Não me sinto
assustado. Depois do “voo do albatroz” que ultimamente venho fazendo para
distanciar-me e analisar todos os dados e possibilidades, o guerreiro está de
regresso, pronto para mais uma nova batalha quando outras ainda estão em curso.
2009-11-22
Acabo de receber um e-mail de um
amigo e antigo colega de internato. Manda-me um poema de Fernando Pessoa:
“Posso ter
defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um ‘não’.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...
(Fernando Pessoa)”
mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma .
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um ‘não’.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo...
(Fernando Pessoa)”
Lindo… vou parar e reflectir…
2009-11-29
Faz algum tempo que nada
escrevo. Na semana passada passei quatro dias internado no I.P.O. e
tecnicamente preparado por duas vezes para entrar no bloco operatório a fim ser
sujeito a uma biopsia. Da segunda vez uma enfermeira ao fim do dia veio-me
dizer que não iria ser operado naquele dia nem no seguinte. Estranhando a
ausência de informação por parte dos médicos responsáveis e com a expectativa
desagradável de ficar internado durante o fim-de-semana, protestei e exigi à
médica de serviço que promovesse a minha alta hospitalar marcando nova entrada. Colaborante, a médica
contactou telefonicamente o clínico responsável pelo bloco e lá saí com a
indicação de internamento na Segunda seguinte para ser operado na Terça.
Agradeci mas não evitei a expressão “vamos a ver se desta vez cumprem a vossa
parte”. Limitou-se a sorrir, condescendente, pois estava informada da minha
revolta e dos protestos veementemente manifestados.
Tive a preciosa ajuda da minha
filha Sami e de meu genro Gabriel que entretanto haviam ido visitar-me. São
demasiado diplomatas e optam sempre pela atitude politicamente correcta nas
intervenções que fazem. Uma doçura de contactos que contrasta com a minha
rebeldia e exigência do cumprimento de compromissos assumidos por outros da
mesma forma que exijo de mim.
Meus companheiros de enfermaria
eram dois homens de idade avançada que haviam sido submetidos a traqueotomia e
um jovem que apresentava nódulos grandes e túrgidos no pescoço e que entrou no
mesmo dia que eu. Era impressionante a vicissitude e dificuldades dos dois
velhotes e um deles recusava sempre qualquer ajuda, levantando-se e indo fazer
a sua higiene pessoal à revelia da enfermagem que, no entanto, o acompanhava de
perto. Eis aqui um guerreiro… Mergulho no voo do albatroz visionando lá do alto
os perigos e ameaças que pendem sobre mim. Não sinto medo nem pena, mas a
apreensão aviva mais uma nuvem sombria no horizonte da vida. Concentro-me e
penso “é só mais uma batalha que acresce às outras que ainda estão em curso”.
Fui ver o correio electrónico e
vi a carta da amiga:
“Olá
Amigo,
Vai correr tudo bem em relação à biopsia e graças a Deus não há-de ser
grave.
Em relação à tua companheira de Anos convence-te que a perdeste e que
agora é só a tua Amiga que está doente. Talvez, assim o "calcanhar de
Aquiles" se torne menos doloroso e mais fácil de encarar.
Tens o resto da tua família e apoia-te neles sem te centrares muito na
tua ex-companheira. Pode ser que resulte. Principalmente agora que precisas de
todas as tuas forças para enfrentares esta tua batalha, pensa assim. Às vezes
temos que ser egoístas para conseguirmos ultrapassar os obstáculos que a vida
nos apresenta. Agora é uma altura dessas.
Um Beijo”
Reflecti… Por mais que uma vez
as minhas filhas me haviam dito isso e sempre respondi como agora o faço: “Se adoptar esse procedimento significará
que desisti de lutar por ela”. Mas em boa verdade não vejo como e nem os
especialistas vêem se bem que digam sempre “vamos esperar e continuar o
tratamento”.
Fim-de-semana tranquilo, pleno
de contactos de familiares e amigos a manifestarem a sua solidariedade e apoio
e, de novo, o internamento com novos exames desta vez efectuados pelas médicas
anestesista e cirurgiã. Tive a certeza que iria ser operado no dia seguinte. No
bloco operatório ainda vi os olhos da anestesista e saí do bloco já acordado.
Informaram-me que entre três a quatro dias teria alta e seria marcado o dia em
que teria conhecimento do resultado das análises anátomo-patológicas e
posteriores acções interventivas. Para surpresa minha, logo no dia seguinte e
após observação clínica foi-me dada a alta hospitalar e marcado o dia do
diagnóstico técnico.
Fiquei contente e na volta para
casa fui ver minha companheira internada numa Instituição de tratamento
psiquiátrico. Ainda não tinha saído da sua “concha” e durante a manhã tinha
estado a gritar que se ia matar.
Lembrei-me que no segundo
internamento um visitante de outra enfermaria que ia ser intervencionado no dia
seguinte a um cancro na base da língua, expressou a sua inquietude e profunda
preocupação. Perguntei se não se tratava de uma biopsia para avaliar da
gravidade do seu problema. Disse-me que isso já havia sido feito. Falei-lhe do
voo do albatroz. Curioso e interessado provocou o desenvolvimento do tema e já passava
da meia-noite quando se foi deitar aparentemente mais tranquilo. Não cheguei a
vê-lo no dia seguinte pois estava na Unidade de Cuidados Intermédios, de acesso
reservado, quando saí do hospital a caminho do meu “ninho”. Talvez possa vê-lo
quando for tirar os pontos da intervenção cirúrgica.
“Ser feliz é deixar
de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.”
se tornar um autor da própria história.”
Grande Fernando Pessoa!
2009-12-03
No passado
feriado tive a grata surpresa da visita de minha irmã, meu irmão e respectivos
consortes. Tal como costumo fazer quando os visito também eles não avisaram da
visita, o que reflecte a filosofia de “amor com amor se paga” sempre presente
nas nossas relações. A meu irmão, e só a ele, grande pensador e poeta, dei-lhe
o conhecimento integral das minhas reflexões. Não tivemos a oportunidade de
conversar em particular sobre o tema e, prevendo isso, deixou-me uma mensagem: (A
sabedoria tomou o lugar da guerra e da luta. Ser o “sábio” em que te tornaste é
a nova forma de vencer qualquer batalha. Admiro-te. Abraço). Li e reli o
texto e reflectindo sobre a expressão “sábio”. Penso que os verdadeiros sábios
sentir-se-ão melindrados por alguém se atrever a colocar-me entre os seus
pares. Na verdade não passo de um amador que ao longo da vida tem tentado
encontrar o seu caminho e que a busca não cessa.
No decorrer
da conversa durante a tarde, a determinado momento disse: há dois sentimentos
que são difíceis de suportar, o da impotência para ajudarmos quem nos é querido
e a solidão. Fez-se silêncio por momentos que pareceram uma eternidade e logo
minha irmã, muito religiosa, expressou a sua fé que a defendia nesses momentos.
Logo mergulhei no voo do albatroz situando-me na questão da fé que ao longo da
vida tem passado tão distante dos meus sentimentos e pensamentos. Confio muito
mais nos valores que me foram transmitidos e que de tão testados se tornaram
nos guias da minha consciência.
Ocorre-me
então um texto de alguém (não estava identificado) que comparava a vida a uma
viajem de comboio: “Em determinado momento entramos numa carruagem e nela
permanecemos algum tempo. Noutro momento da vida andamos de carruagem em
carruagem à procura de algo ou alguém que nos faça ocupar um lugar sem, com
isso, rompermos o contacto com as pessoas e acontecimentos que nos marcaram. Em
cada estação saem e entram novas pessoas e ao longo do percurso outras
percorrem a nossa carruagem, ficam ou continuam a busca do seu lugar.”
Ontem fui
tirar os pontos da biopsia ao IPO da Coimbra. Levei o cacto que havia prometido
a uma jovem que tinha herpes na cara. Só entrava de serviço à tarde e fiquei a
saber que se chama Rita, e logo outras auxiliares que ali trabalham me
garantiram que fariam a entrega. Após o tratamento procurei o Nelson, aquele a
quem havia falado do voo do albatroz que, quando me viu, logo a sua expressão
se iluminou, abraçou-me dizendo-me por gestos que estava bem e que me guardava
no coração. Tinha sido operado ao cancro na base da língua e sabe que ainda tem
muito caminho difícil a percorrer.
Na volta e
por imperativo da minha consciência fui visitar a minha companheira. Estava
deitada num sofá, como de costume e como tem sido há uma eternidade de dois
anos e meio, veio a choramingar, sem lágrimas, dizendo-me repetidamente “eu vou
morrer… eu vou morrer…”. Foi difícil travar essa verborreia e tentei, mais uma
e outra vez, fazê-la encarar a vida falando-lhe de esperanças, de sonhos, das
filhas, genros, neto e netas, dos amigos, da mãe que enfrenta com coragem as
dificuldades de saúde, … inútil. É desesperante! A cada tema, a cada momento,
volta sempre à sua queixa não se interessando por nada do que a rodeia. Apenas
ela e seus lamentos existem. Sinto-me cada vez mais impotente para a ajudar a
encontrar uma saída, uma razão ou argumento que a conduza a pensamentos
positivos de forma a que possa voltar-se para a vida. Parti triste e
constrangido refugiando-me em casa e deixando os sentimentos fluírem enquanto
as lágrimas da minha inutilidade corriam pela face.
«Beijo as
tuas lágrimas meu Pai, temos Amor que chegue no coração para vos amar
eternamente». Escreve-me a minha filha Sandra e falando em nome de todas eu sei
que é a pura verdade. Sempre tive uma excelente relação afectiva com elas não
deixando de lhes proporcionar os “raspanetes” sempre que beliscavam os códigos
de conduta individuais e de relacionamento colectivo.
2009-12-09
Ao longo dos
dias que entretanto decorreram fui tomando uma rápida nota de uma ou outra
situação ou acontecimento que me fizeram mergulhar em reflexões.
Uma delas tem
a ver com sensações que qualquer um em algum momento passa na sua vida: a da
impotência para ajudar quem nos é querido e a da solidão. São as que considero
mais difíceis de superar e só mesmo o escape do meu voo de albatroz vem em meu
auxílio. Poderoso voo que nos torna insignificantes face ao mundo e ao
universo. Quem pode sentir-se só quando nos consideramos como um ponto de
energia pura em evolução no Universo? E que a morte é parte integrante do
desenvolvimento da energia, essência cósmica da evolução?
O que para
mim se afigura como verdade para outros será pura utopia …
2009/12/14
Já passaram
uns dias desde a minha presença na consulta de diagnóstico técnico no I.P.O..
Estavam presentes o médico da primeira consulta Dr. Arnaldo e mais três. Percebi
um certo embaraço do médico a tentar “adoçar a pílula” ao dar-me a notícia de
que se confirmava a presença de carcinoma descrevendo as medidas de tratamento
que se traduziam como sendo a quimioterapia, duas a três sessões em avaliação
contínua, seguida de radioterapia, esta com internamento.
Não expressei
surpresa ou emoção uma vez que conscientemente não tinha dúvidas da natureza
dos nódulos que ainda se estavam a desenvolver o pescoço (e estão) em três
dimensões: extensão, volume e incómodo. Ao referir-me a estas dimensões uma das
médicas levantou-se foi observar-me por palpação a que se seguiu o médico.
Confirmada a
situação passou-se ao planeamento encarando-se o internamento nas duas fases do
tratamento ou fazer a quimioterapia em ambulatório, situação que eu preferia
tanto mais que estando na quadra natalícia seria mais agradável estar com a
família. Ligaram ao sector da cirurgia para marcar do dia da implantação do
cateter necessário mas tal não foi possível de imediato pelo que ficaram de me
comunicar em momento oportuno. Entretanto iria ser observado em estomatologia,
consulta que ficou marcada para o dia 15.
Despedi-me
com um aperto de mão ao Dr. Arnaldo e um aceno de cabeça ao restante corpo
clínico, que retribuíram com um sorriso de simpatia. Gosto do sorriso. É
maravilhoso o despertar de sensações de positividade, empatia e bem estar que
proporciona a quem o recebe. Ao longo da vida já me havia apercebido disso mas
apenas agora senti a sua enorme importância.
Reflectindo
sobre a mensagem que iria enviar à família, decidi não estar com rodeios ou
tentar ser diplomata, interessava transmitir verdade e assim o fiz. Encetei o
caminho e, inevitavelmente passei por Condeixa para visitar a minha
companheira. Apenas manifestou a sua vontade de se deitar e nem dois minutos
esteve comigo, a sua única preocupação (se assim lhe posso chamar) era
aproveitar o quarto aberto. Olhei para a figura a arrastar os pés a caminho do
quarto enquanto uma avalanche de recordações de uma vida conjunta perturbou minha
visão ensombrando ainda mais o meu horizonte vindouro. Olhei para o céu límpido
e de um azul cristalino, agarrei o voo do albatroz e parti.
18:50 -
Acabei de receber um e-mail de minha filha Mafalda:
“Tu és o meu
Hoje, ontem, amanhã…
Esta luta…
Rei dos guerreiros!
Ouvimos, apoiamos e admiramos
Impreterivelmente o nosso albatroz!
Da tua filha Mafalda”
Sem sequer
esperar um pouco e reflectir, respondi:
Não
faças de mim o HEROI que não sou. Sou apenas o soldado que não desiste de
lutar: o guerreiro, que tem medo e o enfrenta, que tem as suas
fraquezas e que busca no albatroz as energias vitais para não desistir.
Poderoso voo que nos traz a tranquilidade e o bom senso. Beijinhos.
Antes, há
cerca de duas horas, a minha filha Sandra havia enviado mensagens que não
compreendi a razão de ser. Parecia nunca ter ouvido falar de sarcomas da cabeça
e pescoço quando, muito antes do diagnóstico clínico da D.T. lhe havia dito o
que tinha e mostrado o resultado da pesquisa que fiz sobre o assunto.
Esclarecedor mas que necessitava institucionalmente de uma confirmação técnica
e científica por parte das entidades oficiais objectivando os procedimentos de
tratamento. Não entendeu, ou melhor, não quis entender a mensagem provavelmente
na esperança de que fosse outra coisa sem importância.
Fui
interrompido por um telefonema de minha irmã Toneta. Como sempre, desde tenra
idade, a cuidar dos irmãos mais novos. Extraordinária criatura com muita fé na
religião católica e dotada de um bem-fazer e bem-dizer excepcional, preocupa-se
muito mais com os outros do que com ela própria. Na conversa disse-lhe que não
precisava que outros sofressem por mim, mas sim de sorrisos pois estes são o
alento da vida “dispenso choramingas pé-de-salsa pois posso contratar
carpideiras e divertir-me a vê-las a chorar, e dispenso beatas pois essas
guardo a dos cigarros que fumo”. Um pouco ou muito duro dado o contexto da
religiosidade em que ela está profundamente envolvida. Expliquei-lhe o “ponto
de vista do albatroz” no contexto do Universo e ela expressou a sua alegria por
ver que não estou desanimado nem triste.
2009/12/17
Acordei
inquieto, pouco passava da meia-noite, Tentei lembrar sem sucesso dos sonhos
inquietantes que me perturbaram o sono sem o conseguir. Tomei leite com
chocolate, fumei um cigarro e fechei os
olhos tentando aliviar as dores nas costas resultantes da fractura da sétima
dorsal há cerca de cinco anos. Então surgiu a pergunta inquietante do sonho
“Como se sente?” E a resposta imediata surgiu-me de rompante “Como o Albatroz
observando o sofrimento da Fénix, sabendo que do renascimento dela depende o
seu próprio futuro”. O mundo vai desabando à minha volta à medida que vou
sentindo a praga a crescer num fluxo de palpitações reflexas que se contraem e se
estendem no pescoço aquecendo a massa de tecidos moles crescendo e tomando
conta do meu envelope. Inexoravelmente vai ganhando terreno enquanto aguardo
pela intervenção dos especialistas e da sua tecnologia científica. Será que
chegarão a tempo de neutralizar o monstro? Olho para o pequeno objecto de
comunicação e questiono: Quando tocarás ouvindo do outro lado um dos
interlocutores do IPO a dizer-me venha em tal dia às tantas horas, em jejum (ou
não) para a primeira intervenção de quimioterapia. Mudo, quieto, o objecto
permanece indiferente às minhas apreensões e angústias.
Relembro os
contactos e o planeamento dos procedimentos prévios às intervenções e volto a
situar-me. O arranque dos poucos dentes originais está marcado para 2010/01/05
sendo necessária pelo menos uma semana de intervalo para o início da
quimioterapia. “Sossega o facho rapaz! Aproveita a quadra natalícia e a folga
porque depois começa a batalha.” (Está lá!! É do inimigo?? Olha, vocês podiam
parar um pouco com os tiros …) Grande
Raul Solnado. Bem hajas!!
Fui entretanto
dormir e às oito horas pelo noticiário soube que pelas horas das minhas
inquietações o País havia sido abalado por um sismo de magnitude 6.1 na escala
de Richter. Curioso… Não???
O dia passou
lento, com a prova da prótese dentária que havia mandado fazer uma vez que
teria de sujeitar-me à extracção dos cinco dentes que me restam face aos
tratamentos programados de quimioterapia e radioterapia. Fui entretanto visitar
minha companheira e, antes disso, falar com o médico psiquiatra que a trata,
uma vez que na quadra natalícia que vivemos há intenções de a trazer ao lar.
Deixou a autorização de saída e alertou para o seu regresso imediato logo que
iniciasse qualquer processo de desestabilização. Encontrei-a mais calma, ainda
muito fechada na sua “concha”. O seu horizonte continua muito ensombrado por
nuvens de tempestades psicológicas, o que me deixa apreensivo nas influências
negativas sobre o desenvolvimento do neto que estará presente nesta quadra.
2010-01-09
Passou a
quadra natalícia e com ela uma série de viagem e contactos directos com a
família e amigos. Foi algo com um sabor agridoce pois todos manifestaram a sua
grande preocupação pelo cancro que se está a desenvolver e a sua influência no
meu estado de espírito. Inúmeras vezes vi-me a necessidade de explicar a minha
filosofia de vida para que compreendessem que as suas preocupações eram bem
maiores que a minha apreensão. Sim, apreensão, pois esta traz uma “carga”
positiva na medida em que nos impulsiona para a luta, a criatividade e a resistência,
por outro lado a preocupação transporta a “carga” negativa, contrária aos
vectores da outra.
Antes das
viagens recebi um e-mail de meu irmão:
“Edgar, a vida acontece sempre que
elaboramos planos para que ela seja vivida de acordo com eles, mas por vezes
esses planos são-nos alterados sem que o queiramos e por forças ou
circunstâncias alheias ao nosso planeamento. Somos porém capazes de melhorar o
que nos aparece, somos determinantes e factor decisivo em tudo o que nos surge,
o teu voo do “albatroz” mostrar-te-á como. Saberás analisar que todas as
transformações têm fundamento. Voa alto meu irmão, tudo isto que disse já o
sabes.”
Fiquei ciente
de que ele compreendera perfeitamente a conversa que tivemos uns dias antes
numa visita surpresa que me fez.
A todos os
amigos e familiares enviei o e-mail de Natal que recebi de um amigo e colega de
escola que vive actualmente no Brasil:
“Quero
neste Natal enfeitar um pinheiro natalício dentro do meu coração e nele
pendurar, em vez de presentes, bolas e luzinhas... Os nomes de todos os amigos,
os antigos e os mais recentes, os de longe e de perto, os que vejo a cada dia e
os que raramente encontro... Os sempre lembrados e os que às vezes ficam
esquecidos no pensamento mas não no coração, os das horas difíceis e os das
horas alegres... Os que sem querer magoei ou sem querer me magoaram. Aqueles
que pouco me devem e aqueles a quem muito devo! Os nomes de todos os que já
passaram pela minha vida, especialmente aqueles que já partiram e que lembro
com tanta saudade... Que o espírito do Natal esteja vivo em cada dia do novo
ano e que a nossa Amizade pendure no tempo... Feliz natal”
Lindo texto
e, conhecendo-o, acredito que tenha sido o autor do mesmo. Meu irmão uma vez
mais expressou o seu pensamento e filosofia de vida com a resposta:
«Nesse
"pinheiro", havia em lugar de luzes uma fogueira sempre acesa, e à
volta desse "pinheiro" juntamos os braços e não conseguimos
abraçá-lo, e se juntássemos todos os amigos, os de ontem e os mais recentes
teríamos o mesmo problema o "pinheiro" seria proporcionalmente maior.
Julgamos que levamos muito tempo para plantar o "pinheiro de Natal",
mas ele cresce connosco e com ele os Amigos seguem-nos. Feliz Natal.»
Para a festa
natalícia filha e genro foram buscar minha companheira com a perspectiva de
ficar em casa durante uns dias. Passou dia e noite véspera de Natal sempre com
muita inquietação traduzida num comportamento deprimente, choroso e raramente
interessada no que passava em seu redor. Voltada para si mesmo nas suas lamúrias
e paranóias, obrigou-me a uma noite de vigília aproveitada para repensar
alternativas que há uns meses procuro sem sucesso. Revi todas as diligências,
consultas de especialistas, exames complementares, tratamentos efectuados e o
que me foi dito pelo seu médico assistente, voltando a sentir em profundidade a
minha impotência para ajudar a companheira de uma vida plena de coisas boas e
más que sempre vivemos juntos. No próprio dia de Natal regressou ao
internamento na Casa de Saúde.
Pese embora o
cansaço e as permanentes dores resultantes de qualquer esforço que me obrigam a
respirar fundo voando para horizontes mais vastos, a viagem no fim do ano foi
para mim não só grata nos contactos, conversas e prospecção da minha própria
interioridade, como clarificadora nas orientações que, no fundo, sempre regeram
a minha vida sem que de tal tivesse consciência. Isto porque agia por instinto
sem me preocupar com o conhecimento das razões. Apenas a figura do espelho de
todos os dias me importunava questionando a validade das minhas acções de
véspera, do dia e do futuro. E eu respondia: O futuro é o presente e o presente
já é passado, vive em paz contigo e com os outros.
Em casa de
minha irmã, de manhã cedo, ela dizia-me “Vou rezar ao meu Senhor”,
invariavelmente eu respondia “Dá-Lhe cumprimentos meus”. No regresso dizia-me
“Olha… Ele retribui os cumprimentos”, Da primeira vez perguntei “Ele lembra-se
de mim?” e a resposta pronta de quem tem fé “Está sempre tomar conta de ti”. É
maravilhosa a sintonia que as pessoas com fé têm na religião que professam.
Desde a
pré-puberdade que me desencantei com o comportamento dos chamados
representantes de Deus na Terra tendo, por isso, desligado das práticas
religiosas regulares obrigando-me a escrutinar criteriosamente cada “representante”
partindo sempre da premissa contrária à da justiça “É culpado até me provar a
sua inocência”. Aberrações de critério, reconheço, mas de que não abdico em
duas matérias fundamentais: Religião e Política. As duas categorias mais
perigosas e perniciosas na vida de qualquer ser vivo, animal ou vegetal, e a
que nem os inertes estão a salvo.
Aquando da
despedida vi na expressão e comportamento de minha irmã a sua grande
preocupação relativa às minhas reacções face à doença que me ataca. Logo
disse-lhe “Quando olho para o meu vizinho neste País e para o nosso mundo, vejo
biliões de pessoas a viverem miseravelmente, sofrendo atrocidades; não posso
deixar de me sentir reconhecido e grato pela vida que tenho tido até ao
presente”. Olhou-me surpreendida e reconheceu a validade da afirmação de tal
forma de encarar a vida abraçando-me com o carinho que lhe é inerente.
A meu irmão,
quase sempre revoltado com a vida mas sempre disposto a enfrentar as
adversidades, numa conversa que tivemos ao tomar um café contei-lhe que antes
de me casar a minha noiva foi visitar, conhecer e apresentar-se à nossa família
e que na volta disse-me: “A tua mãe, tua avó e tua tia disseram-me que gostaram
muito de mim e que eu era mal empregue se casasse contigo. Que tu não
prestavas, que ia ser infeliz” e eu respondi-lhe “Não temos nenhum contacto
íntimo mas apenas um compromisso verbal. Em qualquer altura podes escolher,
casar comigo ou não. Qualquer que seja a escolha que faças … eu aceito”. E
casamos dois anos depois. Meu irmão envolveu a sua cabeça com a mãos e apenas
disse “Não podemos escolher a família”, respondi-lhe “Mas podemos ser nós,
rejeitando ou aceitando a opinião dos outros”.
A três dias
do início do tratamento de quimioterapia e ainda a recuperar da extracção dos
dentes, sentindo o monstro a crescer em três dimensões (volume, extensão e
incómodo) vou voar e observar os horizontes que se me apresentam.
2012-03-03
Hoje a luta não é diferente. Simplesmente existe mais confiança e esperança, não a esperança de vida mas a do crédito na humanidade, nas pessoas, na sua entrega à causas em que acreditam, na juventude que com cada vez mais empenho e criatividade reestabelece condições de vida para os que os rodeiam, conhecendo-os ou não! Estou orgulhoso dessa geração a que uns desbocados chamaram de "à rasca" sem terem em conta o seu verdadeiro valor! Obrigado juventude do meu PAÍS!
Amo-te PAI, simplesmente...
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