11/04/12

Diferente entre iguais



Wolf and The Sheeps
“Nuno Miguel sentiu-se levado ao contrário: o seu espírito saiu das horas diurnas de Lisboa para a noite pesada da província. Atravessou o país na diagonal, em companhia de dois homens sorridentes que durante três horas se esforçaram em vão por entender o seu discurso açoriano. (...)
Quando chegaram à aldeia e ele avistou ao longe um casarão iluminado na noite sem estrelas desse tempo, percorreu-o um indefinido terror. A casa era afinal um túmulo em ponto grande.
A noite que a rodeava dificilmente deixava de parecer-se com a seda de que são feitos os véus dos defuntos. Apeou-se da furgoneta e teve de ser amparado pelos ombros, porque cambaleava nas trevas. Sono, fadiga e desânimo vinham juntar-se à sua timidez e apô-lo ao ridículo e ao riso dos outros. Daí a pouco, vieram recebê-lo dois padres acinzentados no sorriso que trajavam túnicas cor de pérola. As cabecinhas de pássaro, rapadas à navalha na altura da nuca, tornaram-se irrequietas, lá ao cimo do escapulário e do capuz descaído sobre os ombros. O mundo estava todo do avesso, porque Nuno sempre vira os padres vestidos de negro. Pensava que só essa cor aplicava a importância e a mortalha mundana de todos os padres, o seu tristonho olhar de corvos e até a pequena santidade dos seus ritos.
Também eles se inclinaram para ele e apuraram o ouvido, pedindo-lhe que repetisse e falasse mais alto, a fim de o perceberem. Compreendeu que começavam a acusá-lo de ter chegado com dois meses de atraso. A acusá-lo da sua linguagem, do malote de ripas que o pai fizera e cuja pega de alumínio se partira, e a acusá-lo da primeira e única solidão que os meninos herdaram de mamã. (...)
No refeitório, uma onda de entusiasmo recebeu-o de mesa em mesa, ao ser apresentado a todos como «o açoriano».(...) Sem olhar os rostos que o rodeavam e começavam a inclinar-se para si, viu os rostos. Recebeu nos seus o peso de todos aqueles olhos. Aos primeiros interrogatórios respondeu que se chamava Nuno Botelho, ia fazer onze anos e tinha seis irmãos nos Açores. Educadamente, pediram-lhe que fizesse o favor de repetir. E como ficassem a olhar uns para os outros e a franzir os lábios e a encolher os ombros, sempre educadamente, teve a lucidez triste de pensar que talvez fossem cidadãos dum país em tudo diferente do seu. O mesmo no nome e na religião, sem dúvida. Porém, quanto ao nome, ao verbo e à origem dos seus santos, um país sem mar nem barcos e já muito distante da sua infância.

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(...) Compreendeu apenas que o Sono dos Justos, ao qual o salmo aludia, estava já clamando no deserto, dentro de si. A fadiga do corpo turvava-lhe o espírito, esvaziando-o de todas as emoções.(...)
Quando estava quase a dissolver-se nesse sono sem princípio nem fim, do qual vieram a turvar-se todos os anos, recomeçaram a girar-lhe dentro da cabeça as turbinas dos barcos, o zumbido do motor da furgoneta atravessando a noite provinciana e também as vozes daqueles que, perto de si, continuavam a chamá-lo baixinho. Atormentava-os uma curiosidade minuciosa, feita de segredo e clausura, por mais esse naufrágio. Só que aquele náufrago, assim inquirido e misterioso, viera mesmo do mar e só ele trazia consigo a notícia dum passado açoriano.

Aterrorizou-o um pouco a ideia de ficar ali, abandonado à presença de tantos estranhos. De dormir entre gente vinda de todas as terras do seu país, falando a mesma língua, mas gente que não entendera ainda uma única das suas frases e jamais entenderia uma ideia, uma palavra que fosse de cada uma das suas frases...

Para não ter de continuar a responder-lhes e a não ser compreendido, decidiu agarrar na almofada e comprimi-la à volta dos ouvidos. A sua vida ia assim mergulhar num subterrâneo sem fundo nem altura. Nunca mais ele voltaria a ser igual a si mesmo. Então, abriu muito os olhos. Queria conhecer e ao mesmo tempo despedir-se, decifrar e compreender as formas que se modelavam no escuro do dormitório. Amá-las com ódio e odiá-las com amor, talvez. Vendo-as, não estranhou o arrepio e por isso voltou a cerrar os olhos com força. Surpreendeu-o então o facto de o rosto da mãe se ter iluminado, como numa aparição. Havia uma auréola de santa, ou tão-só uma estrela que parecia palpitar no coração da noite. Levado por tal ilusão, tentou sorrir-lhe. Contudo o sorriso dela era também feito de sombra. Não pôde resistir às sombras. Um sorriso assim doía mais do que a dor de estar vivo. Valia talvez um pranto ou um riso convulso. Ao sentir a boca torcer-se e fazer apelo a esse pranto, Nuno procurou suster toda a emoção dentro de si. Prometeu que não ia nunca chorar sobre as lágrimas e sobre a terra da infância. E que ia ser feliz.”

João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas

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