«Há coisas sobre as quais não se pode escrever como sempre se escreveu. Algo muda. Primeiro os olhos, depois o coração – ou os nervos ou aquilo a que os antigos chamavam alma – e finalmente, as mãos.
As primeiras notas que tiro são sobre um homem que nasceu, cresceu, trabalhou, casou, teve uma filha, envelheceu e morreu na mesma aldeia. Na verdade, as notas não são sobre o homem ou sobre a sua vida mas sobre a sua morte. Assim:
A vida da casa e da família acontece toda nesta sala térrea, fresca e escura de uma maneira agradável, com uma grande mesa, um escanho – o típico banco corrido de madeira de Trás-os-Montes –, um fogão e uma porta para o armazém onde se guardam os produtos da terra.
Era Abril, a lareira não estava acesa, mas era junto da lareira que o homem costumava contar histórias, e contou nessa noite, subitamente animado. Despediu-se da família – a filha e a neta tinham vindo da cidade –, disse-lhes boa-noite. À mulher com quem esteve casado sessenta anos disse que não se esquecesse de tomar os medicamentos.
A aldeia onde o homem nasceu, cresceu, trabalhou, casou, teve uma filha, envelheceu e morreu é bonita, com as suas casas de pedra recuperadas e um belo cruzeiro talhado. É bem arranjada, limpa. Está quieta, muito vazia. Parece um museu.
A viúva, com o seu lenço preto e o rosto fechado, move-se devagar, curvada pela artrose. Anda pelas ruas como uma sombra. Ela sabe que vive no fim de uma época, de um modo de vida. Quando nos formos todos, diz, querendo dizer os velhos, as sombras, lentamente as casas, desertas, caem, e não haverá mais aldeia.»
in Agora e na Hora da Nossa Morte, de Susana Moreira Marques
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