23/10/13

As pessoas crescidas

"As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a minha idade ia subindo em centímetros, marcados na parede pelo lápis da mãe. Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um escafandrista, num estrondo imenso de solas. (...) Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa ansiedade de cherne. (...) Já capaz pelo meu tamanho de lhes olhar para a cara, o que mais me surpreendia neles era a sua estranha indiferença perante as duas únicas coisas verdadeiramente importantes do mundo: os bichos-da-seda e os guarda-chuvas de chocolate. (...) Nunca percebi quando se deixa de ser pequeno para se passar a ser crescido. Provavelmente quando substituímos os guarda-chuvas de chocolate por bifes tártaros. Provavelmente quando começamos a gostar de tomar duche. Provavelmente quando cessamos de ter medo do escuro. Provavelmente quando nos tornamos tristes."

António Lobo Antunes in Livro de Crónicas

1 comentário:

  1. acho que o q mais se perde com o largar da infância é a alegria natural que advém da inocência de não se conhecer o mundo (o real mundo cheio de crueldade) e por isso concordo inteiramente com a última frase do autor.

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