O ÚLTIMO ADEUS PORTUGUÊS
Emídio Fernando
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"OS MESES ALUCINANTES DO «ALMIRANTE VERMELHO»
Pg.331/342 - Sempre houve muitos perigos, além dos crocodilos, à espreita na placidez dos rios. Especialmente nas suas margens. Que o diga Rosa Coutinho, militar da Marinha de Guerra de carreira e político polémico por força das circunstâncias e por uma vocação tardiamente descoberta.
Corria o ano de 1961, o tal que ficava marcado pelo início
da guerra colonial em Angola, quando uma ordem militar superior, emitida de
Portugal, determinava que o navio hidrográfico «Carvalho Araújo» percorresse o
Rio Zaire, na fronteira que divide o Congo e Angola. O Comando Naval também
pretendia que se convidasse algumas autoridades congolesas .para um jantar a
bordo do navio.
No comando da operação seguia António Rosa Coutinho, que já
chefiava a Missão Hidrográfica de Angola e São Tomé e Príncipe. No navio
seguiam ainda quatro marinheiros, três brancos vindos de Portugal e um negro
nascido em Angola. Os cinco militares levavam a incumbência de fazer o convite.
Ao longo da viagem, e depois dos contactos preliminares, o comandante do navio
já se tinha convencido de que iria atracar a corveta numa das margens do rio.
Até porque também fora seduzido por um dos marinheiros, o angolano,
considerado, na Marinha, como um excelente contacto que fazia facilmente a
ponte entre as autoridades portuguesas e congolesas. Esta tranquilidade
permitia que Rosa Coutinho e os outros quatro marinheiros desembarcassem em
Boma, onde os esperava o cônsul português na região. Mas mal os cinco homens
punham o pé em terra, seriam presos pelas autoridades congolesas, acusados de
espionagem.
Na noite anterior, vedetas portuguesas tinham percorrido o
rio, durante largas milhas, apontando holofotes para todos os lados na
esperança, justificavam as posteriores explicações oficiais, de encontrar um
militar que caíra nas águas infestadas de crocodilos. A agitação nocturna
preocupava as autoridades congolesas e irritava um dos coronéis, precisamente o
comandante de Boma, amigo do chefe Estado-Maior das Forças Armadas do Congo,
Joseph Desiré Mobutu. Ao lado dos militares congoleses, encontravam-se alguns
angolanos, oriundos do norte de Angola.
Rosa Coutinho e os outros militares brancos eram
encaminhados para Leopoldville, onde permaneceram, enjaulados, os primeiros
quatro dias na garagem de uma casa de um ministro e os restantes quatro meses
numa penitenciária de alta segurança. O militar negro, angolano, integrava a
UPA, o movimento que tinha desencadeado os massacres no Norte de Angola e que
se encontrava baseado no Congo. Na prisão, os militares lusos encontravam
outros portugueses, desertores do exército colonial, mas também belgas e
franceses. A todos, iam sendo reservadas sessões de tortura, especialmente os
que enfrentavam, as acusações de espionagem. Os militares portugueses seriam
libertados pela PIDE. Já com algumas redes montadas no Congo, a polícia
política destacava os agentes António Bernardo e Ferreira Alves para liderar
uma operação que, ao contrário do que se poderia esperar, não envolveu acções
especulares. A libertação fora acertada entre a PIDE e dirigentes do Congo.
Iniciava-se assim, entre a polícia política portuguesa e as autoridades
congolesas, uma longa e frutífera relação de cooperação que iria permitir à
PIDE controlar as fronteiras, trocar informações com as polícias que defendiam
os regimes que estivessem no poder no Congo e fazer a ligação entre os
dirigentes congoleses e o Governo de Lisboa. Esta relação permitia também a
resolução de alguns conflitos esporádicos, especialmente diplomáticos, entre
Portugal e o Congo.
Naturalmente, Rosa Coutinho nunca mais se esqueceu da
tortura e das sevícias de que fora vítima em 1961. E esse espírito não o
largou, até se apossou dele, na hora de aterrar em Luanda, em Julho de 1974,
com o cacimbo a sobrepor-se à imagem que sempre guardara do calor abrasador. E
essa memória iria condicionar parte da sua acção durante os vertiginosos seis
meses que marcaram a liderança dos destinos de Angola.
Emproado com as divisas de almirante, Rosa Coutinho chegava
a Luanda para tomar o lugar de presidente da Junta Governativa de Angola,
recentemente criada por decreto-lei e que, na prática, substituía o cargo de
governador-geral da província. Em Lisboa, Rosa Coutinho já integrava a Junta de
Salvação Nacional e começava a ser conhecido por defender posições muito
próximas dos comunistas. A ideia fora reforçada na altura em que o almirante
presidiu à Comissão da Extinção da PIDE/DGS e da Legião Estrangeira. Ele
próprio admite ter tido simpatias pelo PCP, porque o «trataram bem», mas a
primeira vez que votou, fê-lo no MDP.
O Presidente português, António de Spínola, contra a opinião
do MFA e de todos partidos de esquerda, sobretudo do PCP, ia resistindo em
aceitar as independências dos países africanos apesar da génese do 2,5 de Abril
ter estado precisamente na descolonização.
Junta Governativa de Angola (foto Net)
Rosa Coutinho assumia a chefia da Junta de Angola,
obedecendo à decisão de António de Spínola, mas o almirante não duvida de que o
Presidente escondia outra intenção:
«Estou convencido que o objectivo de Spínola era ver-se
livre de mim. Eu era o único que lhe fazia oposição juntamente com Pinheiro de
Azevedo.»
A decisão de António de Spínola resolvia-lhe dois problemas.
Por um lado, livrava-se de um militar que não alinhava com as teses políticas
dele. Por outro, cedia às exigências do MFA. A desconfiança de Rosa Coutinho
emergia no dia em que Spínola lhe endereçava o convite. A conversa entre os
dois homens, decorrida no Palácio de Belém, durava pouco mais de três minutos.
Rosa Coutinho limitava-se a perguntar se Spínola tinha instruções específicas.
A resposta do presidente surgia curta, mas clara:
«Nada de especial. Recomendo-lhe apenas que faça uma
protecção especial a dois amigos meus: Alias e Cardoso.»
António de Spínola referia-se a Fragoso Alias e Óscar
Cardoso, dois agentes da PIDE, considerados dos mais duros, violentos e astutos
da polícia política. Cardoso fora o responsável pela criação dos «Flechas».
Fragoso Alias comandara a polícia política em Bissau, onde, anos antes, chegou
a ser conhecido como o homem «mais fiel a Spínola do que à hierarquia da PIDE».
Na altura do 25 de Abril, Alias encontrava-se em Moçambique, sendo transferido
para Angola, por ordem do próprio Spínola, porque o agente da PIDE se queixara
de estar a receber «inúmeras» ameaças de morte.
Desconfiando das intenções de Spínola, Rosa Coutinho
resistia em ir para Angola, mas acabaria por aceitar persuadido pelo amigo e
primeiro-ministro Vasco Gonçalves e por outros militares do MFA. Em Luanda, a ía,
de Julho de 1974, manifestações de angolanos e portugueses, na sua
esmagadora maioria brancos, contra os comunistas aguardavam-no. Ainda no
aeroporto, em declarações aos jornalistas, Rosa Coutinho marcava uma posição:
encontrava-se em Luanda para tratar da independência:
«Tenho o prazer de informar, em nome do senhor
primeiro--ministro, que, em breve, a província gozará de um estatuto
administrativo que lhe permitirá governar-se sem ser a partir do Terreiro do
Paço ou do Restelo e, portanto, satisfazendo uma ambição que Angola há muito
manifesta.»
No seu primeiro discurso, Rosa Coutinho ainda prometia criar
um banco em Angola que guardasse as reservas do país. Já no carro, o almirante
iria justificar, aos militares que o acompanhavam, as suas promessas:
«Tinha de trazer um rebuçado para esta malta para ver se
acalmam. Sei que a situação está um pouco quente e estas medidas podem
constituir um tónico para a incerteza que naturalmente sentem. Sabem que vão
perder privilégios, mas ganham noutros campos.»
Nas proximidades do aeroporto, na estrada que liga ao centro
da cidade, Rosa Coutinho lia uma frase, escrita em letras garrafais a tinta
encarnada, e exibida numa enorme parede:
«Fora Coutinho! Não queremos cá comunistas!»
O novo presidente da Junta Governativa entendera a saudação.
Minutos mais tarde, uma outra manifestação, gritando as mesmas palavras de
ordem, esperava-o às portas do palácio, em Luanda. Nessa mesma manhã, o Província
de Angola saía à rua com o título:
«Vem aí o "Almirante Vermelho".»
Não foram só as manifestações verbais que se preparavam para
acolher o novo presidente da Junta Governativa. Nessa mesma tarde, Rosa
Coutinho escapava de ser morto. Um grupo de homens, chefiado por um antigo
capitão do exército colonial, de nome Seara, pretendia abater o almirante
português mal desembarcasse do avião. Mas, depois de alguns encontros com
membros destacados da comunidade branca, Seara e os seus companheiros acabariam
por ser dissuadidos. Os brancos, integrados na FRA, temiam que o assassinato de
Coutinho pudesse acarretar represálias, prejudicando o movimento que tentava
crescer em Luanda.
A partir desse dia, o primeiro em Angola, Rosa Coutinho, sem nunca largar o sorriso e o cigarro no canto da boca que já o tinham celebrizado em Portugal, decidia-se por tomar uma posição radical: iria assinar todos os despachos a tinta vermelha. Como presidente da Junta Governativa e como Comandante Militar.
Essa mesma tinta carimbava a limpeza que Rosa Coutinho se
propunha fazer, iniciando um desvario de decisões, polémicas e ousadas, mas que
marcaram definitivamente os destinos de Angola, que iria durar seis meses. Em
pouco tempo, eram substituídos os comandantes da Marinha e do Exército, só
escapando o comando da Força Aérea porque se encontrava em Lisboa. Ao todo,
afastaria cinco responsáveis e demite 43 pessoas que trabalhavam directamente
com o anterior governador, Silvino Silvério Marques, que fora afastado por
imposição do MFA. Quando chegou a Angola, Rosa Coutinho só conhecia um membro
da Comissão Coordenadora, Leonel Cardoso, que, por isso, iria ser escolhido
para o comando da Marinha e que seria posteriormente o último representante de
Portugal na província de Angola. Também a vermelho, Rosa Coutinho enviava, três
dias depois de chegar a Luanda, um telegrama a António de Spínola,
felicitando-o por ter proferido um discurso que foi o «desbloqueador» da
descolonização. Trinta anos depois, Rosa Coutinho garante que as felicitações
eram «sinceras, sem ironias».
Gen. Silvino Silvério Marques (foto Net)
Começava assim a liderança de Rosa Coutinho em Angola, num
período marcado por muitas jogadas políticas, por ameaças permanentes de se
estar à beira de uma guerra civil, casa a casa, por manobras em Luanda de
outros países, pelo aumento da violência, pela entrada de mercenários e pelo
princípio de debandada dos portugueses. E um tempo que foi decisivo para a
sobrevivência do MPLA em que Rosa Coutinho teve um papel crucial.
O próprio almirante assume as simpatias que nutria pelo
movimento de Agostinho Neto e admite tê-lo ajudado a alcançar o poder. A
primeira oportunidade surgia logo com a aprovação de uma verba de 10 mil contos
mensais destinada aos três movimentos reconhecidos por Portugal. A ideia
surgira a Rosa Coutinho durante uma conversa que teve com o líder da UNITA,
Jonas Savimbi, que se queixava de estar a ter dificuldades financeiras e que,
por isso, teria de recorrer a apoios externos. O presidente da Junta
Governativa não duvidava que o dinheiro da UNITA provinha de Pretória e dos
colonos portugueses, daí que tivesse assinado o decreto que permitiria a ajuda
financeira, igual para os três movimentos reconhecidos por Portugal. Mal a
decisão passava a papel carimbado, Rosa Coutinho avisava os dirigentes do MPLA
que já poderiam levantar o dinheiro. No cofre da Junta, restavam pouco mais de
10 mil contos. Ou seja, a primeira verba chegava às mãos do movimento de Neto,
os restantes movimentos teriam de esperar pela transferência de Lisboa, que
ainda vivia em desordem, no rescaldo do «25 de Abril».
Não era só a falta de dinheiro do MPLA que preocupava Rosa
Coutinho. O «Almirante Vermelho», como lhe chamavam nos jornais, não
duvidava que Agostinho Neto estava derrotado militarmente, depois de ter
sofrido um forte desgaste na guerra contra os militares portugueses e, no
último ano, ter atravessado uma crise interna que provocou dissidências e
dividiu o movimento em duas facções: a de Mário Pinto de Andrade e a de Daniel
Chipenda. Perante este diagnóstico, Rosa Coutinho começava por idealizar a
utilização dos mais de dois mil catangueses que se encontravam em Angola, na
província da Lunda, e que já tinham colaborado com o exército português, em
1968. Na altura, foram comandados por um capitão português dos «comandos»,
Elísio Figueiredo, e treinados pelo célebre mercenário francês Bob Denard. Na
operação de os convencer a alinhar com o MPLA, Rosa Coutinho convidava o
comandante dos catangueses, general Natanael M'Bumba, para uma visita a Luanda
que, a primeira e única vez que entrava no Palácio do Governo, ficara fascinado
por um lustroso Mercedes, com pneus de faixa branca. Ironicamente, Rosa
Coutinho pensava, de imediato, que o carro era «brilhante o suficiente para
seduzir qualquer general». E, poucos dias depois, oferecia o carro a M' Bumba,
estabelecendo a partir daí uma relação que levaria rapidamente à conversão dos
catangueses à causa de Neto. A conclusão do acordo ficou marcada para a cidade
do Luena a 16 de Dezembro, com M'-Bumba a exigir a presença do próprio
presidente do MPLA. No entanto, no dia marcado, o líder do MPLA enviava Lúcio
Lara para o representar. Rosa Coutinho fez questão de participar no encontro,
viajando até à cidade de Luena. À sua espera, na pista do aeroporto,
aguardava-o um vistoso e impecavelmente reluzente Mercedes, com pneus de faixas
brancas, que o levou ao local do encontro. Os catangueses comprometiam-se a
colaborar com o MPLA. O movimento de Neto garantia deixá-los viver em Angola
depois de declarada a independência. Rosa Coutinho regressava a Luanda, satisfeito:
«A aliança foi extremamente útil ao Agostinho Neto. Porque
o MPLA não tinha forças militares e passou a ter a melhor infantaria que estava
em Angola. Na altura, o MPLA tinha apoios duvidosos da URSS. Os soviéticos
não sabiam se deveriam apoiar o MPLA, porque aquilo tudo era um saco de gatos.
Só Cuba dava um apoio sólido.»66
Mas a aliança entre os catangueses e o MPLA não se ficaria
por aqui. Consumado o acordo, os homens de M'Bumba passavam a ser aconselhados
por militares cubanos, com o objectivo de iniciarem uma ofensiva no Zaire para
derrubar Mobutu. Contudo, as intenções guerreiras depressa chegariam aos
ouvidos do presidente zairense, através de dois assessores de M' Bumba.
Imediatamente, Mobutu lançava um apelo a França e à Bélgica, que reforçariam os
seus serviços secretos a actuar em África e ajudariam ao aumento do seu
arsenal. M' Bumba e os cubanos concluíam que não havia condições para terem
sucesso contra Mobutu.
O MPLA ganhava novos aliados, ao mesmo tempo que retirava a possibilidade de esses militares do Catanga se colocarem ao lado da FRA, como ambicionavam, e até tentavam seduzi-los, os membros daquela organização.
Era a segunda vez que, no espaço de dois dias, Rosa Coutinho
fora crucial em «salvar» o MPLA. Após o acordo de cooperação, assinado entre a
FNLA e a UNITA, sob o chapéu de Mário Soares, numa reunião em Kinshasa, o
Almirante apressava-se a convencer a direcção de Savimbi a assinar um
entendimento parecido, usando para isso os meios da Junta para transportar os
elementos da UNITA até à cidade do Luso.
Rosa Coutinho, nem por um momento, hesitava em apoiar o
MPLA, porque sempre se convencera, firmemente, de que o movimento de Agostinho
Neto era o único que representava o povo de Angola. Aliás, tempos depois,
mimoseava a utilizando uma linguagem futebolística, escreviam que ele era um
árbitro que apitava sempre a favor do mesmo lado.
Menos de um mês depois de assumir o cargo, Rosa Coutinho
voltava a enfrentar uma manifestação, mas no pátio interno do Palácio. A
facilidade com que os manifestantes, brancos e pretos, entraram no edifício
levantava suspeitas que a própria PSP tenha sido conivente. E mais tarde essas
suspeitas confirmavam-se quando elementos da própria polícia faziam batidas
pelos musseques e alinhavam ao lado dos manifestantes anti-Coutinho. Dentro do
Palácio, numa das salas que dava acesso ao pátio, Rosa Coutinho subia a uma
secretária para se fazer ouvir e, discursando e respondendo a perguntas,
conseguia travar a fúria até à chegada dos fuzileiros. Mal a manifestação foi
dispersa, Rosa Coutinho ordenava que o Palácio passasse a ser protegido por uma
companhia de fuzileiros. Alguns velavam os arredores do edifício, em cima do
telhado, fortemente armados com metralhadoras. No humor da população luandense,
nasciam os «violinos do telhado».*
De http://petrinus.com.sapo.pt/rosacoutinho.htm
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