12/04/13

As cartas escrevem-se pelas paredes.



  Ontem foi um dia tarde demais. Ontem, as crianças
  jogavam no parque. 

  Hoje, se retornar, não estarão mais lá. Saíram 
  sem aviso, foram-se embora, cansaram-se de tanto
  olhar um pedaço vazio de mundo, onde velhos
  se contorcem para fingir que ouvem, enquanto se
  deleitam com retratos a carvão e palavras 
                                sem sentido.

  Tudo lhes causa transtorno, nos dias que correm.
  Outro dia, foi um jovem que se perdeu. Pegou nas
  coisas que tinha, zarpou mundo fora como se ele 
  ainda existisse - sem medo.

  Mas outros dias há muitos. Jovens que partem  
  há-os todos os dias, nós é que nunca os contámos.

  E eu nunca parto. Fico sempre aqui, de mochila às costas,
  sobretudo na mão, o livro na outra, e uma carta
  na algibeira, de tinta já gasta e envelope
  um pouco encardido.

  Por isso mesmo, quando me preparo para partir, 
  sento-me - como se estivesse a curar um cansaço que
  ainda não me tomou.

  Como se as minhas mãos já tivessem escrito milhentas
  páginas de coisas sem sentido, de textos sem
  morada ou sem remetente definido - enfim, coisas.


Coisas como as praias. Praias como coisas. 
 Textos como poemas. Poemas como não-textos.

E barras de aço sem sentido. Daquelas que quebram
ao mínimo toque, mesmo que seja uma carícia. Mesmo 
que as nossas mãos se unam e encenem um gesto
meigo e lento - como a nossa face a olhar o mundo -
como o mundo a perder-se lentamente pelas pálpebras
que já não se fecham.

À noite é quando tudo se junta dentro de nós,
e se estende pelo chão. Aí, cria-se ininterruptamente
uma vontade de varrer o soalho para que nenhuma
outra cara grite mais, como se as paredes tivessem
vida 

e nós não.

As cartas escrevem-se pelas paredes - é esta a verdade
que o mundo segura. E as chamas de isqueiro todos
os cigarros  todos os acidentes  todas as nascenças
 mortes  descalabros  guerras   balas     tudo isto
tem um sentido

mas o dos textos, esse, ainda o procuro.
Por isso é que escrevo cartas, ainda que só hoje
tenha aprendido a ler as tuas.


Sérgio Xarepe
- Confluências.

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